Livro

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Somos Todos Heróis

Somos todos Heróis

 “Somos Todos Heróis”

 

O livro intitulado “Somos Todos Heróis” reúne um conjunto de mais de 50 testemunhos de pessoas que jápassaram pela dolorosa experiência de enfrentar uma doença maligna do sangue (leucemia, linfoma e mieloma múltiplo). De norte a sul de Portugal, 42 mulheres e 13 homens, com idades entre os 15 e os 67 anos, relatam as suas experiências.

Autora do prefácio, Ana Luísa Amaral, poetisa e professora de literatura inglesa e americana, transmite-nos uma mensagem de força, renovação e esperança.

O livro “Somos Todos Heróis” tem como missão a partilha de testemunhos das vivências de doentes diagnosticados com doença maligna do sangue, com o objetivo de encorajar e ancorar a esperança daqueles que enfrentam a mesma experiência.

Para além dos testemunhos da doença, e de forma a oferecer uma ajuda mais completa, o livro conta ainda com contribuições da psicologia oncológica, prestadas por especialistas no acompanhamento de doentes e familiares. Desta forma, reúne-se no livro duas visões da experiência de doença; a visão dos que a sofrem e enfrentam e a dos que tratam e cuidam das suas consequências psicológicas.

Prefácio

 

DO MUNDO QUE DESABA E SE RENOVA: O MUNDO

Ana Luísa Amaral – Poetisa portuguesa nasceu em Lisboa e vive no Norte

 

Somos antepassados sobreviventes. Indo
vendo dourar-se a antiguidade. E os olhos.

Fernando Echevarría

 

Ela chega de repente, a notícia, sob a forma de palavra. Escrita, falada, de maneira aberta ou disfarçada. Ao próprio, aos que lhe estão próximos, sejam eles parentes ou amigos. E desaba-se o mundo.

O mundo que desabou não é, evidentemente, o mundo à nossa volta, esse que é feito de árvores, e de casas, e de pássaros, e de flores, e de estradas, e de animais, e de pontes, e de gente correndo para chegar aos empregos, e de crianças brincando nos parques, ou de jovens encostados aos muros, conversando. O mundo que desabou não é o mundo das chuvas violentas, ou do frio, nem o do calor morno de uma tarde de verão, porque esse é o mundo que é por todos habitado.

O mundo que desabou à sua chegada, a da notícia feita palavra, é o mundo que, estando dentro, recobre o que dele é fora, porque é o mundo do corpo e das emoções, o mundo dos medos.

Mas quando este mundo desaba, as árvores deixam de ter as mesmas cores, o canto dos pássaros perde a sua nitidez de clave, o medo das pessoas correndo para não perderem os autocarros deixa de ter o valor absoluto que antes tinha, e há-de até acontecer um momento no tempo em que a ternura por se olhar uma criança desaba também. É impossível que isso não aconteça. Porque o mundo daquele que, no seu corpo e no seu pensamento e na sua emoção, recebe a notícia desabou, e com ele desabou também o olhar e a capacidade de ser como antes se era: inocente sobre um corpo que se achava dócil e obediente às coisas e à passagem natural do tempo.

Esta que agora escreve só sabe dizer palavras sobre o desabar desse mundo por ter sido muitas vezes próxima de quem o sentiu desabar. Não sabe o que é desabar o mundo sobre o seu próprio corpo. Conhece somente a dor por contiguidade, por ela lhe ser contingente através do amor, pela notícia dada a si e a quem poderá, em terror, sentir o mundo de si a desabar. Pouco sabe, pelo viver do seu próprio corpo, a que agora escreve estas linhas. Por isso, é com a mais profunda humildade, com a mais imensa reverência que as escreve, sentada numa varanda deitada sobre uma paisagem de árvores, e de flores, e uma pequena ponte ao fundo, onde, de manhã, brincavam crianças.

A humildade advém da intuição sobre a comum vulnerabilidade que é de nós todos, e do pressentimento, essa longa sombra sobre a erva, no dizer de uma poeta muito grande, de que um dia o seu próprio mundo poderá desabar também.

A reverência, essa, provém, àquela que agora escreve nesta noite escura e um pouco arrefecida, sentada à mesa de uma varanda estrangeira, do sentimento de assombro e da consciência de que, mesmo estando sempre irrecuperavelmente sós, e de que o nosso corpo se encerra nos limites que o encerram, a sobrevivência de alguém depende também da sobrevivência de outro alguém. De que o ser indefeso é a nossa mais profunda comum condição.

Mas, ainda que podendo ter sentido em diferido o impacto da flecha, através de quem lhe foi como parte inteira e constituinte de si, como é um braço, um órgão, quem escreve estas linhas nada sabe do que é sentir no próprio corpo a flecha do instante em que ela chega, aberta ou disfarçada: a notícia. Nem sabe de facto o que é sentir depois, no próprio corpo, o tempo a espalhar-se, insinuante e, com ele, a dor do próprio corpo. O medo. A cor do medo.

Quem agora escreve estas palavras sabe só, porque as viu aqui escritas, às outras palavras que agora vereis também, ledores iguais ou cúmplices, do que é avesso ao medo: a luta não corpo a corpo, mas corpo-dentro-e-entre-corpo. E, após essa luta, a coragem da vida. E imagina, quem escreve estas palavras, como será saber que se tem novamente o privilégio limpo que a vida oferece: ver ou ouvir o finíssimo voo de um pássaro, e poder contemplá-lo. Já não em tom inocente, porque nunca se emerge inocente de um campo de batalha, mas mesmo assim: o deslumbramento de olhar o sol de manhã, ou o infinito e esforçado labor de ver uma criança aprendendo a fazer um laço.

Por isso a importância que é falar das coisas todas que há nos mundos, os dois mundos: o mundo de dentro, do próprio que o sentiu desabar, e o mundo de nós todos, de quem agora escreve, e de vós, ledores. Por isso à humildade e à reverência se junta agora a gratidão.

Por estas palavras que aqui estão e nos recordam a igual precariedade e a força da sobrevivência e da guerra contra o medo. E o valor, esse sim total e absoluto, de aprender outra vez, muito devagar, como acontece aos dedos de uma criança, a dar um laço. E depois, a oferecer laços.

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“Quanto mais grave é uma doença, maior tem de ser a esperança. Porque a função da esperança é preencher o que nos falta”
(Vergílio Ferreira)
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